Notícia

Reflexões de barbearia

A cada dois meses visito meu barbeiro e,toda vez que me acomodo naquela tradicional cadeira de ferro fabricada em 1965, é inevitável não refletir sobre duas coisas: a relação do cara das tesouras com seu cliente e a calvície que, implacavelmente, alarga minha testa.

No estabelecimento o qual frequento há dezoito anos não tem dessas modas de toalhinha quente no rosto,massagem facial ou lounge music de barbearia retrô. Sandro, profissional que herdou do pai este ofício milenar, pertence à velha escola e usa como instrumentos de trabalho apenas o pente, a tesoura e suas lâminas de gilete. “A experiência aperfeiçoa o talento” – é o que diria.

Quem o observa trabalhando não vê os frenéticos gestos de um maestro diante da sinfonia. Seu estilo está mais para um ourives, ao articular meticulosamente seus objetos cortantes com a precisão de quem esculpe um artesanato precioso. E é justamente este zeloe paciência que lhe garantema fidelidade da freguesia.

Mas não só de excelência sobrevive um barbeiro. Mais que habilidade e destreza, para se destacar neste ramo é preciso saber lidar com gente como se conhecesse de psicologia. Pois o espaço democrático do interior de uma barbearia é um exemplar reduzido da diversidade que existe aqui fora. Não há idade, religião, cor, time de futebol ou partido político pré-definidos para a sua clientela. Por isso, o profissional faz uso da bagagem adquirida com a vida econduz as conversas não somente ao gosto do cliente, mas da forma que o mesmo se sinta à vontade – ou para falar ou, se preferir,ficar em silêncio.

Deste jogo de diálogos(e de silêncios) se cria um vínculo de respeito mútuo que, a certo prazo, tende a se desdobrar em amizade, fazendo com que o recebimento do dinheiro ao final do serviço prestado não passe de mera formalidade.Pois, por conhecer até mesmo a intimidade de nossos bulbos capilares, naturalmente surge um pacto de confiança entre cliente e barbeiro – afinal, não é a qualquer um que confiamos uma tesoura pontiaguda próximo aos olhos nem uma navalha afiada rente à jugular.

Além de catedrático na arte de amenizar nossa feiura, Sandro é também doutor no trato com pessoas. Tanto que,no sofazinho de espera, há sempre um que está lá só para bater papo, contar piadas ou ouvir histórias.

E como gasto alguns pares de minutos para fazer meu corte, sempre que me reclino naquela cadeira acolchoada é impossível não notar a marca que o tempo, aos poucos, imprime no meu rosto me encarando do espelho.De dentro da capa de cetim que me protege dos meus próprios fios, tento enxergar além das rugas da minha cara aquele moço que, há quinze anos, não cogitava a ideia de possuir mais barba que cabelos. “Mas a calvície também é charme” –reconforta Sandro, cumprindo com seu papel de bom amigo.

Não que eu tenha conflitos com meus trinta e poucos anos e muito menos com ainsolúvel queda capilar. Sou até muito bem resolvido com tudo isso. Mas vero próprio reflexo por tanto tempo é quase uma experiência de auto-constrangimento. É como ter um encontro consigo mesmo, ficar frente a frente com suas verdades, analisando as pequenas deformações do próprio rosto e lendo a narrativa que as linhas de expressão escrevem quando sorrimos –então fico imaginando se tais reflexões filosóficas também afligem Brad Pitt ou Johnny Depp nas barbearias que frequentam na distante Nova Yorque.

De qualquer modo, Sandro domina bem sua técnica ilusionista e, ao operar a tesoura com as mãos cheirando a shampoo de cabelo, é capaz de transformar a nossa cara em algo bem menos pior do que aquela que nos deparamos, diariamente, no espelho do banheiro.

 

Por Farley Rocha

*Farley Rocha, nascido em 1982, é mineiro da cidade de Espera Feliz. Professor de Língua Portuguesa e Literatura, já publicou dois livros de poesia, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015). É colunista do Portal Espera Feliz desde 2010, onde publica crônicas sobre sua cidade e a região da Serra do Caparaó.