Notícia

O sentido do espelho

Hoje ele se encara no espelho e percebe o homem que há muito já não via.

Olha, fixa, vê e se enxerga, podendo sentir que na face refletida existe outro alguém que o espelho não revela.

Rugas, há. Pelos escapando longos das narinas e ouvidos. A testa, que um dia foi estreita feito um rio, alarga-se como um mar de algodão nas ondas ralas dos cabelos.

Apalpa-se a fronte, as pálpebras e as sobrancelhas. Examina o rosto poro a poro, boca e queixo, pescoço e bochechas. Frente ao espelho embaçado pelo vapor do banheiro, avista a imagem que se escondera de si mesmo.

Vê. Mas não acredita. Pois o homem da condição do agora é curvo, demasiado frágil, flácido, com semblante amiudado pelo tempo que passou.

Enquanto mira seus lábios sulcados e secos, recorda-se dos sabores que já experimentou: frutas, doces, beijos. Vê seu nariz de pele porosa e elástica, recorda-se dos aromas que já sentiu: jantares, perfumes, jardins. Vê suas orelhas alongadas e pálidas, recorda-se dos sons que já ouviu: serenatas, gracejos, bailes de coreto. Vê suas mãos trêmulas e sensíveis: recorda-se das texturas que já tocou: veludos, almofadas, cetins.

E, por fim, espantado, vê seus olhos estáticos como se por segundos estivessem hipnotizados. É que por trás da catarata de suas retinas, quase oculto pelas íris fatigadas de rotina, encontra a si mesmo cristalizado na infância de suas mais antigas lembranças – o homem que hoje é velho descobrindo que um dia fora jovem, criança.

Pois se o tempo envelhece o que fica do lado de fora, o espírito rejuvenesce o que habita pelo lado de dentro.