Notícia

O sabor das jabuticabas

Quem viveu a infância no interior há de saber das experiências de se comer fruta fresca colhida direto do pé.

 

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No meu tempo – que fui criança até a primeira metade dos anos de 1990 – a palavra “feira” tinha um conceito vago e distante da minha realidade. Pois gastar dinheiro com frutas só fazia sentido se fosse para comprar aquelas as quais o clima da região não permitia cultivar: maçã, pera, kiwi, morango, abacaxi…

É que no Bairro João do Roque, local onde fui criado e que conserva na atmosfera o espectro fossilizado de minhas lembranças mais antigas, em quase todo quintal havia um pequeno pomar particular. E naquele tempo, de janelas sempre abertas e portas destrancadas, os muros entre a vizinhança praticamente não existiam, permitindo que a passagem de um quintal a outro fosse atalho para a rua de baixo.

Por isso, entre cidadezinhas de terra para os carrinhos de plástico e furos no chão batido para as bolinhas de gude, subir em árvores fazia parte de nossas brincadeiras tanto quanto pular maré ou soltar pipa nos ventos de agosto. Nessa de ficar de galho em galho é que as frutas nos supriam a fome na hora do lanche da tarde.

No mês de março tínhamos as goiabas. Eram da vermelha e da branca. Tirávamos as carocas com uma dentada, vistoriávamos o miolo para certificar se não tinha bicho e comíamos dúzias até nos fartar. Assim também era com as mangas. Em cada quintal achávamos uma qualidade diferente. Manga espada, coquinho, rosa. Depois, para lavarmos a cara e as mãos lambuzadas, usávamos a água da mangueira ou a torneira do tanque da varanda de alguém.

Na minha casa, por exemplo, tinha um pé de araçá. Não me recordo em qual época do ano dava, mas antes mesmo de madurar saíamos comendo as frutinhas verdes e fazendo caretas pela acidez peculiar que elas têm. Na casa ao lado tinha um pé de ameixas amarelas. Cutucávamos os cachos com uma vara de bambu e cuspíamos os caroços marrons que mais pareciam sementes de cacau. No outro quintal tinha uma amoreira, com uma galhada esplêndida de folhagens que, de tão carregada, dobrava-se ao chão onde galinhas ciscavam a areia. Após a catada, sempre ficávamos com dedos e beiços tingidos com a nódoa arroxeada das amoras.

Embora o acesso a tais searas nos fosse livre, vez ou outra tomávamos galopes dos vizinhos mais intolerantes, por nos considerarem“menores infratores” dos quintais alheios. Um dia, enquanto comíamos mexerica no pomar da dona Anita, o seu marido, um velho ranzinza que não media palavras quando o assunto era defender o terreno privado, saiu de sua casa com um cinto de couro na mão e nos botou para correr como nunca havíamos corrido. Escapamos das correadas, mas os xingamentos até hoje reverberam na minha memória.

Contudo, o que havia no Bairro João do Roque naquele tempo e que hoje, infelizmente, não resta sequer vestígios eram as famosas jabuticabeiras da Fazenda. Tratava-se de um antigo casarão colonial centenário, de assoalho de tábuas e esteios de braúna. Pelos seus arredores havia umas vinte jabuticabeiras, igualmente antigas, que fervilhavam de gente da cidade inteira na época que davam frutos. Para nós, crianças, aquele pomar era a Meca dos quintais frutíferos. Seu João e Dona Mariazinha, os donos do local, recebiam a todos com a gentileza de bons vizinhos que eram e nos deixavam subir nas copas a sete metros de altura para colhermos as negras esferas adocicadas, entre sabiás, canários e juritis.

Por isso, pensar no sabor das jabuticabas e das tardes entre aquelas monumentais árvores de sombras frescas é o mesmo que me deleitar num pomar de lembranças em pleno deserto da minha saudade.

 

Por Farley Rocha

*Farley Rocha, nascido em 1982, é mineiro da cidade de Espera Feliz. Professor de Língua Portuguesa e Literatura, já publicou dois livros de poesia, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015). É colunista do Portal Espera Feliz desde 2010, onde publica crônicas sobre sua cidade e a região da Serra do Caparaó.