Notícia

O jacaré do Bairro do Roque

Era 1992 e eu tinha uns dez anos de idade. Naquela época, o Bairro João do Roque não passava de umas cinquenta casinhas distribuídas por três ou quatro ruas. O trevo do asfalto era uma espécie de fronteira que dividia o bairro do resto da cidade – o que imprimia a ele ares de um tranquilo povoado rural.

Eram os tempos das famosas “jabuticabeiras da fazenda”, com seu antigo casarão assoalhado de esteios de braúna e longas portas e janelas. O já falecido patriarca dos Borges, Seu Manuel, ainda gozava de plena saúde para a jogatina de bisca com os vizinhos. Em dias de chuva, o córrego que vem da Barragem dispunha de bagres para a pesca dos locais e, em noites de verão, o brejal da vargem de arroz permitia a caça de rãs entre a constelação dos vaga-lumes e a percussão dos sapos. As ruas eram de terra batida e no chão duro das calçadas sempre havia uma amarelinha desenhada e buracos para bolinhas de gude.

É neste cenário de século passado, já tão remoto em nossas memórias, que me criei, jogando bola descalço na poeira e brincando de aventuras nos cafezais dos morros adjacentes. Foi por esse período que um fato curioso aconteceu, do qual apenas moradores mais antigos do bairro devem se lembrar.

Ocorreu que minha avó materna, a Dona Natair, uma senhora de olhos claros, físico frágil, mas de temperamento forte, residente da última casa depois da fazenda das jabuticabeiras, notou que seus filhotes de gato, concebidos numa aninhada entre as bananeiras nos fundos da casa, estavam um a um desaparecendo misteriosamente. Logo que soube que um animal de estimação de um dos sitiantes do sopé da Torre havia fugido, minha avó consternou-se de assombros: “Quem está devorando meus bichinhos é o jacaré!”.

Sim! Há muitos anos um morador das proximidades do Bairro do Roque possuía um jacaré de estimação, trazido ainda filhote de suas pescarias anuais no Pantanal e criado, a franguinhos vivos, dentro dos cercados de um velho chiqueiro. Um dia o animal fugiu do cativeiro e permaneceu por várias semanas desaparecido – o que, certamente, tirou muitas noites de sono ao seu dono. Imagine se o bicho vitimasse uma criança ou aparecesse, como num pesadelo inacreditável, no meio da cozinha de alguém.

O fato é que o Morro da Torre possui várias nascentes que desaguam no córrego do bairro, aquele mesmo dos bagres e que passava a duas dezenas de metros de distância da casa da vó Natair. Provavelmente, ao fugir do chiqueirinho, e guiado por sua intuição instintiva, o jacaré seguiu o curso natural das águas e se acomodou em local seguro pela vegetação da roça, onde havia alimento de sobra – no caso, os gatinhos da vovó.

Era então uma tarde ensolarada de terça-feira quando os homens vieram capturar o animal. Largaram os afazeres das lavouras e se reuniram na casa da vó Natair, portando armas rudimentares improvisadas com ferramentas de trabalho. Entre foices, machados, enxadas e facões, apenas um deles trazia arma de fogo: uma espingarda de chumbinho que servia para acertar lagartixas na parede das tulhas.

Ao tomarmos ciência do fato, largamos a bola no meio da rua e corremos para testemunhar a inusitada caçada. A notícia se espalhara tão rapidamente que, em questão de minutos, formou-se uma plateia de uns vinte moleques espalhados entre os pés de café, assistindo com olhos mais de curiosidade do que de espanto, aquela incrível ação dos que caçavam o réptil fujão.

Até que um dos homens, munido de instrumento de pau e corda muito parecido com aqueles que a carrocinha utiliza para apanhar cães abandonados, identificou o jacaré semi-submerso em uma das curvas do córrego e, com a segurança da cobertura dos companheiros de caça, capturou o animal com a destreza de quem pega um frango no galinheiro.

Então, trouxeram dependurado na ponta da vara até o terreiro da casa da minha avó aquele animal que, a maioria de nós, só conhecíamos dos safaris do Globo Repórter.

Para todos os presentes, estar diante daquele bicho pré-histórico que media um metro da cabeça à ponta da calda, de pele dura e áspera feito uma armadura acinzentada, com uma serrilha de dentes afiados capazes de atravessar o couro das botinas dos que desciam da lavoura para presenciar o caso, e principalmente para mim, ainda criança, ver aquilo tudo era como estar nas cenas do Allan Quatermain e as Minas do Rei Salomão, tamanhas surpresa e comoção que o episódio despertava.

O dono do réptil, que acompanhara desde o princípio o processo da captura, lacrou com uma fita de plástico a boca do jacaré – já que abatê-lo seria mesmo uma covardia – e o levou de volta ao cativeiro, de onde nunca mais tivemos notícias daquele exótico e extraordinário predador.

O certo é que depois disso, quando íamos pescar no córrego, sempre desconfiávamos que, camuflado em alguma moita de capim ou sob as águas lodosas dos pequenos remansos, aquele fascinante bicho estivesse nos espiando com seus miúdos olhos de um admirável, mas também temível, animal de estimação.

 

Por Farley Rocha

*Farley Rocha, nascido em 1982, é mineiro da cidade de Espera Feliz. Professor de Língua Portuguesa e Literatura, já publicou dois livros de poesia, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015). É colunista do Portal Espera Feliz desde 2010, onde publica crônicas sobre sua cidade e a região da Serra do Caparaó.