Notícia

Djow Maluco

O primeiro movimento cultural artístico-literário ocorrido no Ocidente foi o Trovadorismo, por volta do século XII. Naquela época, para alegrar a corte da região da Provença, no sul do antigo reino da França, poetas cantadores compunham versos sobre amores vassalos e nobres donzelas. Com o tempo, o estilo se espalhou por toda a península ibérica e tornou-se o que conhecemos hoje como cantigas trovadorescas.

Da Europa medieval, a tradição atravessou mares, línguas e continentes e hoje, 900 anos depois de seus precursores, os trovadores da modernidade são aqueles músicos que, por trocados recolhidos no chapéu, exibem seus repertórios para quem caminha por ruas e esquinas.

Assim como no passado, são espécies típicas das grandes cidades, sendo raramente vistos pelo interior do país. Mas estes dias, como que rompendo a rotina por vezes monótona de Espera Feliz, um desses artistas seculares pôde ser visto por aqui se apresentando no Calçadão em frente à Prefeitura Municipal, no cruzamento da Roque Ferreira de Castro com a João Sebastião de Amorim.

Com violão em punho, voz rouca e um discreto remelexo de quem bate os pés para marcar o compasso, uma exótica figura deu ares inusitados para a paisagem provinciana do centro da cidade. Junto ao chapéu puído virado para baixo na calçada, uma placa improvisada com papelão rasgado trazia os dizeres em letras garrafais: “ME AJUDE A GRAVAR MEU CD”.

Como cronista de hábitos curiosos e sempre atraído por tipos incomuns como este, aproximei-me do forasteiro e lhe prestei a devida reverência que todo artista – só por ser artista – merece. Quando terminou de tocar uma de suas músicas desconhecidas, ensaiei um aplauso acanhado e perguntou-lhe o nome. “Djow Maluco”, respondeu ele.

Vestido com um paletó surrado, camisa com ramagens preto-e-branco na estampa, calça blue jeans escura e botas de camurça desbotada, o violeiro andante tocava intrigantes canções a respeito de amor, lembranças, otimismo e sonhos. Os que passavam, desabituados com tal performance no meio da avenida, comunicavam-lhe um aceno tímido com os olhos, um ou outro parava para ouvi-lo por dois segundos e alguns poucos lhe ofertavam moedas de 25 e 50 centavos.

Claramente influenciado pelo maluco beleza Raul Seixas – silhueta evidente não só nome que adotou, mas também nos óculos escuros e no cavanhaque agrisalhado que trazia à face – contou-me sobre sua trajetória de peregrinações e paragens, de altos e baixos, de ganhos e perdas, de alegrias e decepções, de conquistas e desventuras. “Por isso canto, brother! Porque pra mim, música é reencontro e partida, lágrima e sorriso, fúria e paixão, desencanto e vida…”

Enquanto Djow Maluco filosofava poesia e dedilhava lucidez no violão, lembrei-me de Francisco, el Hombre, personagem mítico de Cem Anos de Solidão, do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez. No livro, Francisco, o Homem é um menestrel errante de quase 200 anos de idade, que perambula com pés descalços de aldeia em aldeia transmitindo notícias dos lugares distantes em forma de canções que ele mesmo compõe. Só que no lugar do violão, seu instrumento é um acordeom.

Diferente da personagem de Garcia Márquez, Djow Maluco não traz notícias dos lugares onde pisou – Rio de Janeiro, Cuzco, Brasília, São Tomé das Letras –, mas em suas músicas autorais, as mesmas que pretende gravar em CD, ele fala da escola de seus quarenta e seis anos de vida e quase vinte de estrada, acumulando poeira no paletó gasto de perambulações e no coração calejado tanto quanto seus dedos de violeiro.

Ao final de nossa breve conversa, Djow Maluco – que de maluco não tem quase nada – tocou uma de suas excêntricas canções que falava de fogueiras, montanhas, estrelas e oceanos com a mesma altivez na voz dos que fazem do mundo sua própria morada.

Na despedida, deixei-lhe uma nota de 5 reais, apertei-lhe a mão e desejei boa sorte. Porque não importa se na França da Idade Média, ou se nas esquinas de Copacabana, ou se no Calçadão de Espera Feliz, trovadores como este serão sempre necessários para lubrificar as engrenagens da nossa rotina e nos lembrar que, apesar de tudo, arte e música são essenciais para a vida.

Mas na rua em frente, carros transitavam indiferentes atravessando buzinas aos seus acordes.

 

Por Farley Rocha

*Farley Rocha, nascido em 1982, é mineiro da cidade de Espera Feliz. Professor de Língua Portuguesa e Literatura, já publicou dois livros de poesia, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015). É colunista do Portal Espera Feliz desde 2010, onde publica crônicas sobre sua cidade e a região da Serra do Caparaó.